O Corpo que vaga

28.2.12

A carcaça que o cobria pesava, enfim. Fétida, putrefata, estava aos pedaços. Cascas finas e cinzentas caíam quando se aventurava a andar, criando um rastro de imundice onde quer que fosse. Estava seco por fora. Por dentro, porém, sentia como se seus orgãos, ossos e sangue fossem uma só gosma, quente e pegajosa. Levantar-se da cama pela manhã era cada vez mais pesaroso, e com frequência se deixava morrer na escuridão do quarto, tão imundo quanto ele próprio. 

Ouvia, no silêncio, as vozes e os passos apressados dos seus estranhos vizinhos. Nunca entendera o tempo. Aos outros parecia sempre faltar, e para si, sobrava, abundante e pungente. Pensava que o dia deveria ter menos horas, afinal. 

Quando então resolvia levantar-se e sair, ao abrir as cortinas, o sol forte queimava seus olhos e também os dos andarilhos na rua. Por quanto tempo dormira? Não sabia ao certo. Na verdade, sentia como se nunca tivesse acordado. Descera as escadas e o velho mexicano que se dizia porteiro gritou-lhe que não haviam cartas para ele. A rua continuava abafada e cheia como se lembrava. Entrou no bar de costume, tomou seu trago e comeu um pão dormido. Mal conseguia engolir, não sentia fome nem sede. Comia por hábito. Agora, o sol já cedia lá fora e as pessoas voltavam de seus trabalhos medíocres, para suas vidas infelizes. Ao menos eram bons fingidores, como ele já fora um dia.

Ele tinha sido um bom medíocre. Com todos os sorrisos estampados e os movimentos maquinados. Castrado socialmente. Só que isso fora a mais tempo do que queria recordar. Hoje, era só um corpo velho, um monte de pedaços colados, vagando no pequeno espaço que determinara para si mesmo. Subiu então as escadas, entrou no cubículo mofado e sentou na cama. Sentiu vontade de ligar a televisão, só para não ter que ouvir o "parabéns" de algum dos filhos mal educados dos seus vizinhos de parede, mas trocara o aparelho que não utilizava pelo direito de usar o telefone do corredor, o qual tinha função única de pedir que trouxessem a lavagem servida no bar, até o seu apartamento. 

Os aplausos aumentavam. Botou o travesseiro sobre a cabeça e forçou o sono. Não seria tão difícil. Aliás, que horas eram mesmo?
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O sabotador

25.2.12

Você machuca.
Confunde.
Diz por dizer, de simples que é.
Não faz, nunca faz.
Deixe que crie, ignora a caverna
e a mente que cria, despudorada,
um universo inteiro de sombras e luzes.
Diz por acreditar,
se firma no paradoxo, não nega.
E se deixa cair, por conhecer o céu.
O meu céu, o teu céu.
Estrelado colorido quimérico.
Que desbota no tempo
e se refaz na palavra.
Que nunca nosso será.
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O teatro de um fantoche só.

7.2.12



Abandonou o corpo na cama, cansada. A escridão contrastava com os olhos abertos e fixos. Era tão difícil parar de pensar, desligar, e simplesmente esquecer, parar de sentir. Pela primeira vez em muitos meses, os ombros pesaram, como fizeram antes, e com eles, o mar revolto descobre a mente tranquila para devastar. Não sabia se era, de fato, real. O sentimento. A lembrança. Opostos se confundiam e a dor não mais doía, a felicidade não mais alegrava. O que sentia, se perdia no oceano. Um náufrago sem esperança de resgate, que abandonara a sí próprio e esperava pelo fim pacientemente.

 Ela que sempre tivera propensão á calmaria, sentia agora o chão desaparecer e as certezas, tão lineares, se confundirem, por objetos nem ao menos distinguíveis, por figuras tão distantes que quase invisíveis. Não sabia aliás, se a própria tormenta era criação de sua imaginação fértil. A razão pregando uma peça. Era tudo tão difuso, tão líquido, homogêneo, que não podia-se separar a invenção, do palpável, do real.

O que vinha lhe tirando o sono não era a dúvida do sentir. Era a dúvida do existir.

Por isso os olhos continuavam abertos. Quantas noites já perdera arquitetando soluções, repensando conceitos, buscando saídas e por fim, constatando fracassos, com os olhos abertos para a escuridão. O quanto tinha sofrido. A dor, crua, da incapacidade, forçou a desistência.

Desistiu da curva, por cansaço, e voltou para a sua linha reta. Procurou por um novo caminho, e seguiu por ele. A dúvida não existia, a falsa ilusão era criação de sua mente fantasiosa. Pois a seta nunca atingiria ese alvo, agora sabia disso. A tormenta não passara de uma chuva de verão, que devasta tudo de forma irreparável, mas é rápida e uma hora, por maior que possa parecer, vai embora silenciosa.

Os olhos só se fecharam as 4h27 da manhã.
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