Cru

29.10.11
Andou sem rumo por muito mais horas do que achou que faria ao sair daquele cômodo fétido que era o quarto alugado. No início, sentia o vento batendo contra a face e o cheiro do fracasso ia abandonando-o, pouco a pouco. Esse que por tanto tempo se misturou com o gosto amargo já conhecido de todas as bocas que por ali passaram, bocas tantas e tão rápidas que não valiam a pena de serem contabilizadas, ou sequer lembradas, minimamente que fosse. Era agora o sabor misturado de todas aquelas bocas. As salivas, os lábios. Todos ali, juntos e esquecidos. Perdidos num mar de pérolas falsas e baratas. Sentia, como se fossem um, aquela profusão de números, e ao mesmo tempo, nada. Assim como ele próprio.

Parou. Aos poucos, o que era convicção foi se perdendo, assim como os calor do sol que já não aquecia mais a pele com o passar das horas. Tinha ele próprio esfriado rápido demais. Fora vencido pela ferocidade de coisas que não nascera com força para combater, coisas que se esquivava desde criança e que nunca tivera ânimo pra aprender a enfrentar; Era um fraco, e o sabia. Tinha momentos de coragem e ímpeto, porém eles sempre se frustavam antes mesmo de sair do campo da imaginação.

Seus sapatos estavam gastos e a barra da calça puída. O relógio, inútil, estava esquecido na gaveta do guarda-roupas. Ora, nunca fora pontual mesmo, e em situações como as atuais, não precisava medir o tempo em nenhuma de suas escalas, sejam elas de horas ou dias. Que seja, isso tudo não ia dar em nada mesmo, como sempre. Olhou em volta e percebeu que tinha se afastado três quarteirões do ponto de partida; Esse tinha sido seu récorde, sua declaração de falência.

Levantou-se do meio-fio, que havia sentado há alguns minutos, bateu o pó - o da rua, pois o que estava impregnado nele demoraria um pouco mais para sair. Talvez nunca saísse. - e andou o caminho de volta. A sopa enlatada estava esperando-o, junto com a possível carta de demissão passada por baixo da porta, ordem de seu chefe, que percebeu que ele não voltaria, quando deixou o prédio nessa manhã dizendo que ia tomar um trago.

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4 barulhos :

{ M.Caldas } at: 29.10.11 disse...

Bom. Muito bom. Essa verve meio romântica nas descrições é interessante, assim como o ritmo lento da escrita é condizente com o da narrativa. Você vai longe. Beijo.

{ Julia } at: 29.10.11 disse...

Adorei. Muito bom mesmo. Impossível não lembra de "Crime e Castigo", síntese do puro fracasso. Bem ao meu estilo. Beijo!

{ Ana Luísa Faria } at: 29.10.11 disse...

Muito bom, Andressa! Não sou nenhuma especialista em literatura, mas senti envolvida com o seu texto :)

Anônimo at: 31.10.11 disse...

No meio da leitura eu já tinha idealizado alguém e enquanto eu lia, senti uma enorme curiosidade de saber que fim terá esse rapaz. Realmente envolvente ;)

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