A Vida e a Morte de Ninguém, Parte 1.

22.6.12


Ao nascer, o pai de João-Sem-Nome decidiu por não dar nenhum nome á criança pequena e enrugada que ainda não parecia ninguém para ter um nome. Não se pode errar ao dar o nome a alguém, disse á mãe quando ele voltara do cartório com um espaço em branco na Certidão de Nascimento. Quando ele se parecer com alguém, damos um nome, argumentava ele enquanto a mãe amamentava o pequeno embrulho choroso.

E assim foi. Um mês se fora antes que a mulher voltasse á reclamar. Seu estoque de adjetivos e apelidos estava se esgotando e a cada visita de um parente, gastava horas justificando o porquê de seu filho não ter um nome. Daqui a pouco o dirão bastardo! Ou sabe-se lá o que esse povo é capaz de dizer. Dê um nome para o seu filho, homem, ou então eu mesma darei! Gritava a mulher ensandecida.

Porém, o pai afirmava que a criança ainda não tinha cara de ninguém. Não se parecia com José, Otávio ou Pedro. Andava pelas ruas pensando em nomes e ao conhecer alguém, tentava dar o nome do desconhecido á criança, mas o nome nunca parecia caber naquele corpo miúdo. E enquanto o filho aprendia a engatinhar, o pai perdia o sono pensando em nomes e concatenando variações. Essa criança tem cara de Letônio, pensava. Mas não queria que seu filho fosse confundido com nenhum país gelado.

Um ano se passou, o pequeno menino andava, corria, quebrava copos e a mãe já havia se acostumado a chamá-lo de qualquer outra coisa que não fosse um nome. Resignada, cansada de discutir, a pobre mulher aceitou a sandice de seu marido e achou melhor não piorar tudo. Melhor ficar calada, afinal, isso não podia durar para sempre.

Só que o menino aprendera a falar. Mas, mamãe, meu nome não é Filho, nem Amor, porque nunca me chamam pelo meu nome? choramingava o pequeno inutilmente, pois com os anos a mãe aprendera a transformar justificativas em verdades, e o que era mais importante na vida de um homem senão seus atos? ou então os feitos que faria no decorrer da vida? o nome de nada importava! E a essa altura do campeonato, a própria mulher não se importava mais, habituara-se a não precisar usar nomes, a definição que coubesse ao momento seria o nome provisório e a vida seguia em frente.

Se não importa vou me chamar Napoleão, resmungava o pequeno homem que repetia todos os nomes que lia nos livros da casa, tomando-os como seus por direito e protesto. E como continuaria a fazer, em vão, até o fim de sua insípida vida.
"

Meio-dia no outono.

17.5.12

O corpo vaga distante, alheio.

As certezas não sabia em que canto deixara. As emoções se diluiam aos poucos no ar úmido da tarde em queda, e os olhos fechados andavam bastante cansados para sair à procura. O canto desafinou. A poesia desandou. Se afogando em desvontades, deixava o corpo morrer no meio da encruzilhada e se abstinha de decidir qualquer coisa, terrificado ou incrédulo ou ambos ou nenhum. As palavras saíam tortas, espaçadas, disformes. Não me sei mais. Tento me agarrar em versos aleatórios, mas derrapo no meio-fio e caio, arrastando os lábios no chão, cobrindo o cinza de vermelho-desesperança.

E cá, nessa sensibilidade embotada, repousa o desconhecido. Cadavérico, mórbido, estanque. Ou apenas em repouso, esperando por ser empurrado ladeira à baixo.
¨

O descuidado.

30.3.12
É dor.
Do não ter, do querer, do precisar.
O sangue que corre, o tempo que voa,
anestesiado. Até entrar em contato com a pele,
aquela pele, tão sua conhecida.
Um pulso. Fracionado em centenas, basta.
Subverte inércia em eletrecidade, faz tremer.
Cria caos, confunde de simples que é,
devasta.
E do desprevinido, que sempre 0 foi, toma em cheio
as distrações e esbofeteia-lhe a face, pois tão simples,
tão rápido, tão incauto,
tão alheio, que engana. Nunca seu.
Ele desliza lépido pela grama, tão distante,
impossível de alcançar,
e angustiante de almejar. É dor.
"

Melancólico.

23.3.12


Sentou no ônibus, chovia na janela e o céu de Botafogo se diluía na tarde fresca. O vento batia forte, e com ele, a música que falava de um futuro a dois a fez fechar os olhos. Estava tão clichê nas últimas semanas. Vendo em todos os rostos o verde-água que queria para si. Sentiu inveja. Esse vento livre que passava por todas as casas e abraçava todos os pedestres, destemido, a fez lembrar dos sonhos que eles criaram um dia.

Pensou no abraço que ela não sentia a meses e que fazia tanta falta. Saudade que dói, que faz querer voltar o tempo, prolongar o beijo e o jeito que ele a olhava enquanto sussurava a música deles. Nunca pensou que seria capaz de sentir tanta Falta.

A chuva caía lá fora, e ela quis se encaixar naquele abraço quente. Quis deitar na cama e dividir fones, ir ao parque falar sobre nuvens e livros e sonhos, lembrar do passado e fazer planos de casas amarelas, dormir abraçado, ter dois filhos e uma estante de vinis. Quis que ele risse do seu jeito perdido e a ensinasse a amar de novo.

Desceu do ônibus, a música acabou e ela tinha esquecido o guarda-chuva. Quis que a garoa passasse, e que a saudade, com ela, fosse embora e trouxesse de volta o sorriso que queria beijar de novo.
"

O Corpo que vaga

28.2.12

A carcaça que o cobria pesava, enfim. Fétida, putrefata, estava aos pedaços. Cascas finas e cinzentas caíam quando se aventurava a andar, criando um rastro de imundice onde quer que fosse. Estava seco por fora. Por dentro, porém, sentia como se seus orgãos, ossos e sangue fossem uma só gosma, quente e pegajosa. Levantar-se da cama pela manhã era cada vez mais pesaroso, e com frequência se deixava morrer na escuridão do quarto, tão imundo quanto ele próprio. 

Ouvia, no silêncio, as vozes e os passos apressados dos seus estranhos vizinhos. Nunca entendera o tempo. Aos outros parecia sempre faltar, e para si, sobrava, abundante e pungente. Pensava que o dia deveria ter menos horas, afinal. 

Quando então resolvia levantar-se e sair, ao abrir as cortinas, o sol forte queimava seus olhos e também os dos andarilhos na rua. Por quanto tempo dormira? Não sabia ao certo. Na verdade, sentia como se nunca tivesse acordado. Descera as escadas e o velho mexicano que se dizia porteiro gritou-lhe que não haviam cartas para ele. A rua continuava abafada e cheia como se lembrava. Entrou no bar de costume, tomou seu trago e comeu um pão dormido. Mal conseguia engolir, não sentia fome nem sede. Comia por hábito. Agora, o sol já cedia lá fora e as pessoas voltavam de seus trabalhos medíocres, para suas vidas infelizes. Ao menos eram bons fingidores, como ele já fora um dia.

Ele tinha sido um bom medíocre. Com todos os sorrisos estampados e os movimentos maquinados. Castrado socialmente. Só que isso fora a mais tempo do que queria recordar. Hoje, era só um corpo velho, um monte de pedaços colados, vagando no pequeno espaço que determinara para si mesmo. Subiu então as escadas, entrou no cubículo mofado e sentou na cama. Sentiu vontade de ligar a televisão, só para não ter que ouvir o "parabéns" de algum dos filhos mal educados dos seus vizinhos de parede, mas trocara o aparelho que não utilizava pelo direito de usar o telefone do corredor, o qual tinha função única de pedir que trouxessem a lavagem servida no bar, até o seu apartamento. 

Os aplausos aumentavam. Botou o travesseiro sobre a cabeça e forçou o sono. Não seria tão difícil. Aliás, que horas eram mesmo?
¨

O sabotador

25.2.12

Você machuca.
Confunde.
Diz por dizer, de simples que é.
Não faz, nunca faz.
Deixe que crie, ignora a caverna
e a mente que cria, despudorada,
um universo inteiro de sombras e luzes.
Diz por acreditar,
se firma no paradoxo, não nega.
E se deixa cair, por conhecer o céu.
O meu céu, o teu céu.
Estrelado colorido quimérico.
Que desbota no tempo
e se refaz na palavra.
Que nunca nosso será.
¨

O teatro de um fantoche só.

7.2.12



Abandonou o corpo na cama, cansada. A escridão contrastava com os olhos abertos e fixos. Era tão difícil parar de pensar, desligar, e simplesmente esquecer, parar de sentir. Pela primeira vez em muitos meses, os ombros pesaram, como fizeram antes, e com eles, o mar revolto descobre a mente tranquila para devastar. Não sabia se era, de fato, real. O sentimento. A lembrança. Opostos se confundiam e a dor não mais doía, a felicidade não mais alegrava. O que sentia, se perdia no oceano. Um náufrago sem esperança de resgate, que abandonara a sí próprio e esperava pelo fim pacientemente.

 Ela que sempre tivera propensão á calmaria, sentia agora o chão desaparecer e as certezas, tão lineares, se confundirem, por objetos nem ao menos distinguíveis, por figuras tão distantes que quase invisíveis. Não sabia aliás, se a própria tormenta era criação de sua imaginação fértil. A razão pregando uma peça. Era tudo tão difuso, tão líquido, homogêneo, que não podia-se separar a invenção, do palpável, do real.

O que vinha lhe tirando o sono não era a dúvida do sentir. Era a dúvida do existir.

Por isso os olhos continuavam abertos. Quantas noites já perdera arquitetando soluções, repensando conceitos, buscando saídas e por fim, constatando fracassos, com os olhos abertos para a escuridão. O quanto tinha sofrido. A dor, crua, da incapacidade, forçou a desistência.

Desistiu da curva, por cansaço, e voltou para a sua linha reta. Procurou por um novo caminho, e seguiu por ele. A dúvida não existia, a falsa ilusão era criação de sua mente fantasiosa. Pois a seta nunca atingiria ese alvo, agora sabia disso. A tormenta não passara de uma chuva de verão, que devasta tudo de forma irreparável, mas é rápida e uma hora, por maior que possa parecer, vai embora silenciosa.

Os olhos só se fecharam as 4h27 da manhã.
¨

O Engaiolado

22.1.12

É medo de cair.

Por isso não consegue olhar para o abismo que se abre abaixo do ninho, assustador. Suas asas por certo arquejariam e bateriam em falso quando, temerário, se lançasse no vazio do primeiro vôo. Paralisado, mortificado, em pleno ar, o corpo em queda seria um simples saco de pequenos ossos. A existência oscilante justificada pelo fim débil e simplório.

As asas, intocadas. A vontade de voar engaiolada pelo o medo de queda.
¨

Sobre o que nunca aconteceu

6.1.12


E no fim,
Desejado fim, triste fim,
a dúvida, agora eterna, se cria, enraiza.
O tingido desbota, o som se esvai.
Teu último olhar, consentido, pesaroso, educado,
encontrou o meu, igualmente disfarçado.
Fraco. Esperando arrependimento.
Por ser tolo, e inquietamente lúcido. Por querer a raiva,
crua e sólida.


O fim não existe. Nada existiu.

(Mas será que você continua
a me ler?)
"